Certa vez fui despertada para o tema da espera, da vida em reticência e da solidão feminina. Nesse fluxo e intuição escrevi o curta OITO.
Cena 01 – Praça – Externa - Dia
Maria brincando de amarelinha. Vemos apenas seus pés e o voar de seu vestido enquanto pula as casas da amarelinha.
Maria (off)
Eu amei. Eu amo. Do primeiro dia
até hoje, amei o mesmo homem.
Esse amor já foi risada, paixão,
explosão, gritos, gemidos,
silêncio, solidão. Há tempos
solidão... Eu me chamo Maria.
Cena 02 - Rodoferroviária de Brasília – Dia
Vemos a rotina do lugar, vendedores ambulantes, carregadores de mala. Poucos passageiros. Pouco movimento.
Maria chega correndo, olha em volta e não vê o que procura.
Chama pelo nome de Silva, várias vezes.
Maria
SILVAAA! SILVA!!
Sem resposta.
Maria grita desesperadamente. As pessoas a olham com estranheza e se afastam. Maria fica ali, em pé, olhando para os lados.
Cena 03 - Casa de Maria e Silva – Interna - dia
Maria e Silva sentados a mesa na cozinha catam feijão.
Silva
Sabe que eu adoro catar feijão com você. (gaiato)
Maria ri.
Silva
É, tem muita mulher aí catando feijão sozinha.
Maria
Humm, é?
Silva
É!
Eles riem. Suas mãos se aproximam e se tocam. Eles se olham com doçura, amor, cumplicidade.
Brincam, jogam grãos de feijão um no outro. Um grão cai dentro do decote de Maria. A brincadeira vai ficando mais safada.
Eles se aproximam e começam a se beijar bem devagar. O clima esquenta. Eles transam.
Cena 04 – Praça - Externa - dia
No chão o desenho da uma amarelinha. Maria joga uma pedra e começa a pular. Silva, parado no último quadrado da amarelinha, que se chama Céu, observa.
Maria
Vai ficar aí é, parado no Céu?
Silva
E onde mais eu ia querer ir depois daqui?
Maria faz que não sabe com os ombros.
Silva (cont...)
Eu tava aqui pensando...nessa amarelinha da vida, desde o 1 até o céu...
Maria
Você filosofando!
Silva
Também tenho meus conhecimentos.
Maria sorri.
Silva
É que a gente nasce, cresce, reproduz...
Maria e silva se olham em silêncio.
Silva
Casa.
Maria
Casar não tinha que vir antes de reproduzir?
Nessa hora Maria chega ao Céu (ao fim da amarelinha, onde Silva já estava). Ele tem nas mãos uma aliança.
Silva
Casa comigo?
Cena 05 - Rodoferroviária de Brasília – dia
Maria sentada, espera. Ela observa o movimento da rodoviária e vê pessoas chegando, partindo, choro de
criança, abraços apertados, beijos apaixonados, tristeza da partida, alegria da chegada.
Maria olha tudo com atenção e dor.
Passagem de tempo vai anoitecendo, mostrando a rotina do lugar.
Maria se levanta para ir embora. Caminha lentamente, depois pára e fica estática enquanto tudo se move muito rápido ao seu redor. A vemos de costas e escutamos em off sua voz.
Maria (amarga)
Eu olho pra todos com tanta atenção. As pessoas, seus jeitos, as palavras que saem de suas bocas, as risadas, seus filhos, suas alegrias, eu acho tudo tão ridículo.
Cena 06 – Rodoferroviária/Barraca da Didi – Dia
Várias pessoas tomam café da manhã na barraca de pastel da Didi (50, gordinha, animada, amiga, nordestina). O forte dali é o caldo de cana e o pastel de carne. Mesmo sendo de manhã, há sempre alguns bêbados locais e Didi serve aquelacaninha matinal pra despertar o estômago. O comentário preferido é falar de Maria, a mulher que espera.
Homem 1
Bote aquela de acordar o estômago, Didi.
Didi
Vixe homi, hora dessa.
Homem 2
Oxi Didi, é assim todo dia.
Didi faz um muchocho e serve a pinga para os dois.
Homem 1
Ué, não chegou ainda não aquela tal de Maria?
Didi
E o que é que você tem a ver com isso hein?
Homem 2
Mas já faz é tempo demais que essa mulher vem pra cá todos os dias.
Didi
E você, não faz tempo demais não que é fiel a sua branquinha.
Homem 1
Vixe que tu tá retada hoje hein
Didi, que foi, tá faltando é uma pegada das boas, né?!!!!
Eles riem, Didi faz cara de que não gostou.
Homem 1
Pegada das boas quem deve de tá precisando é essa tal de Maria.
Homem 2
Dizem até que ela já ficou moça de novo.
Os homens riem.
Didi pensativa, como falando pra si mesma.
Didi
Ninguém volta a ser menina.
Nesse momento Maria vem chegando.
Maria
Bom dia, Didi. Bom dia (aos outros). Tem bolo de fubá e café fresco.
Cena de algumas pessoas comprando.
Didi
Que novidade é essa agora?
Maria
Olha Didi é pra ajudar a passar o tempo, pra fazer um troco...
Montagem: Maria sai e caminha em direção a seu banco de sempre. Enquanto Maria caminha acompanhamos a passagem de tempo: mudanças de roupas, sapatos que vão ficando mais
desgastados, folhas que caem no chão indicando as estações que passam, poeira, etc. Maria chega ao banco e se senta, já não está mais com o carinho de bolo e café.
Anoitece.
Maria gesticula e fala sozinha como se Silva estivesse ali.
Deita-se no banco e dorme.
Didi passa e joga um cobertor sobre Maria.
Cena 07 - Rodoferroviária de Brasília – Dia
Dia seguinte.
Didi chega com um café, senta-se ao lado de Maria.
Didi
Fez frio de noite?
Maria
Obrigada pelo cobertor.
Didi
Você precisa desistir disso.
Silêncio, as duas olham o horizonte. Olhos emocionados, um bom tempo de silêncio e olhar.
Cena 8 – Casa de Silva e Maria – externa - Noite
Silva na varanda escuta uma música que vem da vizinhança.
Silva
Maria vem escutar a sanfona.
Maria chega. Entrega um copo com cerveja pra ele e bebe em outro.
Escuta, sorri, balança o corpo no ritmo da música.
Maria
Festa animada!
Abraça Silva por trás apaixonadamente. Ele se vira, ensaiam uns passinhos de dança.
Silva, olhando para Maria.
Silva
Canta pra mim?
Maria canta.
Silva a beija quando ela termina.
Cena 09 - Rodoferroviária de Brasília – Dia
Maria sentada, espera. Apesar da dor que trás sempre no fundo do seu olhar Maria está mais bela, um pouco de maquiagem, roupa mais alegre.
Donato, porteiro, a observa.
Ele come milho cozido.
Aproxima-se e se senta ao lado de Maria.
Donato
Você gosta daqui?
Maria
Por quê?
Donato
Não, é porque eu não gosto daqui não. Da rodoviária, não gosto não, mas eu tava falando é daqui dessa cidade, muita grade. Onde você mora tem grade?
Maria (pensa um pouco)
Talvez.
Donato
Talvez?! Ou tem grade ou não tem grade. A moça tem um jeito de falar estranho.
Maria ri.
Donato
Eu sou porteiro. Eu trabalho dentro da grade. Eu controlo quem tá dentro e quem tá fora da grade. Sim, o senhor pode entrar, não, você não pode subir. Tô esperando chegar um primo que vem trabalhar de
porteiro.
Maria
Você é engraçado.
Donato estende a mão.
Donato
Eu me chamo Donato.
Maria constrangida não pega, apenas responde sem graça.
Maria
Maria.
Donato
E eu que pensei que você não ia rir nunca. Quer milho?
Maria faz que não.
Maria olha para um ônibus que chega com algumas pessoas,
Silva não está entre elas mais uma vez.
Donato
E a moça, também ta esperando alguém?
Maria
E a gente não tá sempre esperando alguém nessa vida?!
Donato
Olhe, chegou meu primo. Como faço pra ver a moça de novo?
Maria
Por aqui.
Donato sai e de longe vemos ele e o primo se abraçando.
Maria olha em volta e percebe que não pertence a aquele lugar, ou a qualquer outro. Escuta o rádio que diz que estamos prestes a chegar a mais um Réveillon, se dá conta do tempo que está ali. No rádio começa a tocar a música que Maria cantou aquele dia pra Silva na varanda de sua casa.
Maria
A música, aumenta a música.
Didi, aumenta essa droga.
Didi aumenta a música que ganha força e enche o lugar.
Maria escuta a música, canta, dança como se dançasse com Silva.
Didi caminha em sua direção falando com Maria aos berros.
Didi
Não vai voltar Maria, não faz sentido, não sei. Deve tá morto, com outra família. Todo esse tempo, nenhum sinal. Maria, chega, você não tá bem.
Maria (agressiva)
Eu tô bem, eu só tô esperando, não vai voltar?! Você fala isso porque é sozinha. Cadê seu homem hein Didi, cadê?!
Didi
Que dia você vai desistir disso?
As duas choram.
Maria começa a caminhar em direção aos trilhos da ferrovia.
Maria chega aos trilhos.
Começa a pular nos trilhos como se fossem casas de uma amarelinha. Em seu delírio, joga a pedrinha que cai na casa 8, ela segue pulando e vê a posição Céu e uma aliança.
Ela chega até lá, se abaixa, pega a aliança e se vira sorrindo.
Em off ouvimos.
Eu me chamo Maria.
Ouvimos o barulho do trem que chega.
Fim
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